Texto
publicado quarta, dia 29 de agosto de 2012
Por
Antônio Cláudio da Costa Machado
Desconsiderando
muitas das críticas dos especialistas e dezenas de boas sugestões apresentadas
pelos relatores parciais da Reforma do CPC,o relatório do Deputado Sérgio
Barradas (PT-BA) mantém e amplia a concentração de poderes nas mãos dos juízes
de primeira instância, ao arrepio dos direitos das partes e dos advogados,
revelando inequivocamente o autoritarismo que cerca o projeto em tramitação na
Câmara. As razões são múltiplas e passamos a enumerá-las:
1.
O relatório mantém a eliminação de quase todos os procedimentos cautelares
específicos que representam limitações importantes ao poder jurisdicional, tais
como: o arresto; o sequestro; a busca e a apreensão; o arrolamento; a caução. A
falta dessas disciplinas dará poderes enormes aos juízes em matéria cautelar,
colocando em perigo nosso patrimônio e nossa liberdade;
2.
O relatório Sérgio Barradas mantém a possibilidade de o juiz conceder medidas
cautelares de ofício fora dos casos expressamente previstos em lei (artigo
284);
3.
O relatório também mantém expressamente o poder concedido aos magistrados para
determinar “a intervenção judicial em atividade empresarial ou similar” (artigo
548), o que significa enorme perigo para a atividade econômica brasileira;
4.
Desconsiderando tanto a proposta original do Senado quanto as variadas críticas
apresentadas nas audiências públicas e em publicações dos especialistas, as
figuras do processo cautelar e das medidas cautelares, tão conhecidas e tão
estudadas no Brasil desde os anos 1930 quando veio à luz a doutrina insuperável
de Piero Calamandrei, são reduzidas ao instituto da tutela antecipada, o que
também contribui para a criação de super juízes e para a mitigação do direito
de defesa (artigos 277 a 293);
5.
O relatório mantém o exagero e o absurdo de conferir aos juízes de primeiro
grau o poder para “dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção
dos meios de prova” (artigo 121, inciso IV), em franca oposição à garantia
constitucional do devido processo legal;
6.
O relatório Sérgio Barradas preserva a perigossíma autorização dada aos
magistrados para, ao “aplicar o ordenamento jurídico”, promover “a dignidade da
pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade,
a moralidade, a publicidade e a eficiência” (artigo 6º), princípios
constitucionais abstratos que se dirigem aos Poderes Legislativo e Executivo e
ao Supremo Tribunal Federal — no âmbito do controle de constitucionalidade —,
mas não aos juízes de primeira instância;
7.
O relatório mantém a eliminação de vários procedimentos especiais — como a ação
de depósito, anunciação de obra nova, a reserva de domínio e a prestação de
contas pelo devedor —, o que significa que o nosso processo civil ficará mais
pobre, já que os procedimentos especiais permitem a adaptação do processo às
peculiaridades dos direitos materiais, e mais autoritário, já que os juízes
ficarão livres de requisitos e condições para a concessão da tutela
jurisdicional. Além disso, o sistema ficará privado dos valores fundamentais
representados pela segurança e pela previsibilidade;
8.
Ainda no plano dos procedimentos especiais, agora focalizados os de jurisdição
voluntária, o relatório Sérgio Barradas equivocadamente se posiciona pela
eliminação da “separação consensual”, como se essa fosse a única interpretação
possível da Emenda Constitucional 66/2010 (Seção IV, artigos 750 e 751);
9.
A eliminação das “medidas provisionais” do CPC de 1973 (artigo 888, incisos de
II a VII) e sua pura e simples substituição pelo novo procedimento especial denominado
“Das Ações de Família” (artigos 719 a 725) — que não reconhece a figura da
“separação”, que submete as causas envolvendo criança e adolescente aos
procedimentos do ECA e que exclui a intervenção do Ministério Público, salvo no
caso de interesse de incapaz — demanda apreciação cuidadosa em sede legislativa
para que não se criem mais problemas do que soluções quando da sua utilização
prática pelo Poder Judiciário;
10.
O relatório Sérgio Barradas se mostra profundamente autoritário ao não admitir
o recurso do agravo de instrumento contra decisões interlocutórias que
indefiram a produção de provas (artigo 1.029). É sabido que uma causa é vencida
ou perdida em juízo em função das provas que se podem ou não produzir. A
ausência do agravo neste âmbito significa ferir de morte as garantias do
contraditório e da ampla defesa e, por conseguinte, ferir de morte a própria
advocacia;
11.
Identicamente autoritário se mostra o relatório ao não admitir o agravo de
instrumento contra decisões que apreciem a inversão do ônus da prova, a
inadmissibilidade da prova ilícita e a prova emprestada. Submeter a
reapreciação de tais matérias apenas ao recurso de apelação é praticar
injustiça qualificada contra a advocacia e contra a cidadania;
12.
Na esteira das críticas constantes dos dois tópicos anteriores, parece também
de todo antidemocrática a eliminação pura e simples do recurso de agravo retido
que permite hoje o ataque imediato e oral a decisões ilegais que o juiz toma
nas audiências de instrução e julgamento. Sem o agravo retido, estaremos
submetidos ao silêncio e a decisões incontrastáveis dos magistrados de primeira
instância. O relatório Barradas presta seu integral consentimento a mais essa
amputação dos direitos da advocacia;
13.
A restrição enorme imposta ao agravo de instrumento e a eliminação do agravo
retido são apenas dois lados do mesmo caminho que sedimenta o desaparecimento
do instituto da preclusão (artigo 1.023, parágrafo único), para as decisões
judiciais de caráter probatório. Trata-se de uma justificativa aparentemente
legítima, mas que esconde o mais puro arbítrio contra a liberdade de provar;
14.
Outro aspecto que revela o inescondível caráter autoritário do relatório Sérgio
Barradas é a manutenção da proposta cruel de eliminação do efeito suspensivo da
apelação (artigos 1.009 e 1.028). Num país onde 40% das sentenças são
reformadas pelos tribunais, não é possível retirar o efeito suspensivo ex lege do apelo sem
provocar uma avalanche de injustiças. No Brasil, a maior garantia de um
julgamento justo repousa na expectativa de cumprimento do duplo grau de
jurisdição. Permitir a execução provisória da sentença, como regra,
significará, além de tudo, um enorme retrocesso na nossa cultura jurídica. A
eliminação do efeito suspensivo não é necessária, mas sim um choque de gestão
que torne o nosso Poder Judiciário uma máquina que trabalhe melhor para a
solução dos conflitos — como vem fazendo o Rio de Janeiro, que julga uma
apelação em oito meses. Eis a saída democrática para o problema;
15.
A arbitrariedade representada pela proposta de desaparecimento do efeito
suspensivo da apelação não é compensada pela atribuição de poder ao relator
para impedir a execução, (artigo 1.028). A questão é que será imposto um enorme
trabalho ao relator para atribuir o efeito suspensivo, já que terá de dar razão
ao apelante, e tirá-la do juiz, o que vai significar a necessidade de
proferimento de uma decisão bem fundamentada. Pelo contrário, para negar o
efeito suspensivo, bastará ao relator sustentar a sentença do juiz por “seus
próprios e jurídicos fundamentos”, o que será infinitamente mais fácil.
Conclusão: haverá de fato uma avalanche de execuções provisórias se a proposta
for aprovada e um risco de muita injustiça ser perpetrada em nome da celeridade
processual;
16.
Na linha de pensamento de apressar as execuções, segue outra proposição
profundamente autoritária sugerida pelo relatório Sérgio Barradas. Trata-se da
disposição que institui o que se pode chamar de “apelação de instrumento”, o
que vai equiparar, em termos de processamento, a apelação ao agravo (artigo
1.024 e parágrafos). Autoritária a proposta porque, a pretexto de agilizar a
execução provisória nos autos que repousam na primeira instância, vai impor ao
advogado do apelante a exigência de reprodução completa de todas as peças dos
autos para a instrução da petição de interposição do apelo que deverá ser
dirigida diretamente ao tribunal. Tornar-se-á muito mais difícil o ato de
apelar, o que, somado à facilidade de executar provisoriamente as sentenças,
vai criar entre nós uma Justiça de instância única de poderes concentrados e
absolutos nas mãos dos juízes de primeiro grau;
17.
Se não bastassem os poderes instrutórios, antecipatórios e cautelares quase sem
limites concedidos aos magistrados, além dos poderes para executar
imediatamente suas próprias sentenças, o relatório Sérgio Barradas também
mantém a autoritária forma de punição representada pela sucumbência recursal a
ser imposta a quem ousar desafiar a sentença por meio de apelação (artigo 86,
parágrafo 1º). O enfraquecimento do duplo grau de jurisdição e, por
consequência, do direito ao contraditório e à ampla defesa, estará
definitivamente estabelecido entre nós;
18.
De todo o exposto e tendo em vista como se encontra projetado o Código de
Processo Civil mais autoritário de que já se teve notícia em nossa história,
fica também a certeza de que o prevalecimento do relatório Sérgio Barradas
poderá representar uma grande porta aberta à incontrolabilidade das decisões,
insegurança jurídica e à própria corrupção no seio do Poder Judiciário.
Antônio Cláudio da Costa Machado é
advogado e professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da
Faculdade de Direito da USP, professor de pós-graduação da Faculdade de Direito
de Osasco, coordenador de Direito Processual Civil da Escola Paulista de
Direito, mestre e doutor em Direito pela USP.